sábado, 16 de maio de 2020

O QUOTIDIANO INDUZIDO

A amizade

Transporta-se no bojo
ou na raiz,
e, quando exígua,
está ao alcance
de uma mão,
pura,
é sua irmã,
e mesmo inerte
aperta-nos,
deixando uma marca,
húmida,
de ternura.

16 Maio 2020
Arlindo Mota

REGISTOS DE UMA QUARENTENA OU MAIS.



Episódio 15

Ninguém se considere imune aos efeitos poderosíssimos daquilo a que já se chamou “a caixa que mudou o mundo”.
Num lado da caixa estão os atiradores. E há de tudo: snipers exímios, atiradores assim-assim e canastrões.
Do outro lado estão os alvos, que vão ser atingidos sem o saber.
Ao fascínio daquela “coisa”, não resistiu aquele pobre diabo que há um par de anos aparecia nas transmissões televisivas relativas a determinado clube do Norte, furando por entre a multidão que também queria ser filmada. A figura triste e desdentada do “emplastro” parecia que já fazia parte daquelas emissões.
E tantas vezes o sorriso desdentado surgiu nos ecrãs que alguém de bom coração (ouvi dizer que foi um conhecido humorista) resolveu oferecer uma dentadura nova ao infeliz, que passou a exibi-la com um sorriso rasgado de orelha a orelha. Há dias voltei a vê-lo no ecrã, que também já se chamou de pequeno ecrã e que hoje é do tamanho que se quiser, só limitado pelo tamanho da bolsa que tem que o pagar. o que me fez recordar o início da história.
Mas o fenómeno não para aqui, no “Zé-povinho”, pois sempre que uma figura de primeiro plano é entrevistada, vemos pessoas conhecidas ou ilustres desconhecidos que se querem dar a conhecer, colocando-se estrategicamente de modo a conseguirem um segundo plano que os coloque no “boneco”, não para obter uma nova dentadura, que bons dentes já eles têm mas para alcançar um bom naco onde ferrá-los. E também aqui há de tudo: políticos, empresários, professores universitários, enfim, aqueles que devem ser os melhores de nós.
É uma cena triste.  
 
14 de Maio de 2020.
Sanchez Antunes

DIAS DE DESCOBERTA OU O ABSURDO DOS DIAS



Debruço-me da varanda. Contemplo o céu carregado e a chuva que corre sobre os telhados, e desliza, murmurante, nos vidros das janelas. 
Mais uma desculpa para permanecer hoje no esconderijo da casa.
Espero que a chuva se esgote, que o céu aclare, para acabar com esta quietude, agora justificada pela água breve que rasga os céus e condiciona a liberdade ao parapeito de ferro da varanda.  
Estes dias cansam-me, porque sei que, inevitavelmente, os próximos serão iguais, e nada cansa mais do que viver dentro de uma roda, que incessantemente circula na mesma direcção.
O aguaceiro parece ter abrandado. 
Dos telhados ainda escorrem as últimas gotas e um gato perdido, com água colada no pêlo, salta dum esquecido recanto, e corre para longe. Foge apenas porque o seu instinto a isso o obriga. 
Olho o relógio. Parou às sete horas de um infindável dia, guardado nas dobras da memória, e nunca mais retomou a sua função de marcar o tempo.
Recusa-se a registar a solidão, o vazio, o silêncio. o absurdo e incompreensível tempo, onde a tarefa de reencontrar o sentido da vida, carregando o fardo dos dias iguais, me recorda o cruel castigo imposto ao rebelde Sísifo, eternamente condenado a recomeçar...
A chuva parou. 
O relógio marca as sete horas, da manhã ou da tarde, tanto faz...

13 de Maio de 2020
MAlice Silva

quinta-feira, 14 de maio de 2020

AMENDOEIRA

                                       Foto Elisabete Godinho. Curso de Fotografia. UNISETI

terça-feira, 12 de maio de 2020

PENEIRANDO OS DIAS



Oitava semana. Sinto-me a deambular pela casa, não porque me sinta deprimido, estou lúcido, bem lúcido, mas zangado, é exatamente isso. O meu espaço é outro, gosto de gostar das pessoas, gosto da proximidade, gosto da conversa, do olhar e, quando calha, até de uma disputa, de um confronto de ideias. Custa-me ver a alegria ser tão pouco: pequena onda logo submergida por outra maior, negra, confusa, deprimente. Que diabo se passará connosco que não sabemos criar espaços solares que durem a vida de cada um, transmissíveis e, entretanto, melhorados, de modo a premiarmos honradamente, aqueles que a seguir chegarem.
É um facto que o futuro é rumar-se para caminhos de incerteza; mas esse rumo poderia ser severamente atenuado se a mão humana se entregasse à provisão de fórmulas dignas, estas, por sua vez, certamente libertadoras de um caprichoso primarismo onde se patinha.
Fala-se que a epidemia que no momento nos ameaça e confina terá tido origem intencional ou negligente. Não sabemos se terá sido assim, o fogo cruzado de acusações trás consigo outros objetivos, não nos dá sumo para nada. Porém, é sabido, (e não nos fica bem sermos ingénuos nestas avaliações) que, por todo o lado, interesses ligados àquilo a que se chama defesa, ou segurança, investem, tanto em inteligência quanto em capitais, valores ocultados na manipulação de viros e bactérias visando a criação de armas de letalidade diabólica, cuja confirmação de eficácia, necessita ser comprovada no terreno.
Outra coisa, mas esta demasiadamente comprovada, é a de que a maldade humana não tem limites, e que nem a chegada dos adventos mais promissores que a história informa, fora capaz de debelar.
A vida não é má. A natureza não é má. Nada do que existe no universo se move com o propósito de nos castigar. A chuva é boa. O sol é bom. Até a dor, quase sempre quando aparece, é para nos avisar de possíveis erros de caminho.
O problema, talvez sejam os conceitos que geramos e nos servem de guia: o conceito de herói, o conceito de grandeza, o conceito de bem- fazer, os tantos conceitos que nos aglutinam e dogmatizam, eles mesmos tão visíveis, que a não tangibilidade dos mesmos devia carregar-nos de preocupações. Desculpem o desabafo, mas estou zangado de me roubarem à vida que, sem convívio, carece de sentido.

6 de Maio de 2020        
João Santiago


quinta-feira, 7 de maio de 2020

NO DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA


Caríssimas e caríssimos companheiros da UNISETI,
Então, têm lido muito, têm escrito alguma(s) coisa(s)? Já li de alguns, textos muito interessantes no blog que o Dr. Arlindo Mota coordena. Parabéns!
Começo por agradecer as mensagens escritas, as lindas imagens e os telefonemas que tenho recebido. É sempre um prazer falar com quem tem os mesmos interesses que nós e sobretudo com alguém que conhecemos e que estimamos. Bem hajam! Falar convosco ou ler-vos é um bálsamo para este viver entre quatro paredes em que tenho de continuar pelo menos por mais um mês.
Hoje celebra-se em todo o universo lusófono do Dia Mundial da Língua Portuguesa e, sendo terça-feira, o nosso dia, não poderia deixar de aparecer aqui. Só para um breve apontamento. Comemorando-se desde 2009, só em 2019 o Dia Mundial da Língua Portuguesa foi reconhecido e ratificado pela UNESCO. É mais uma data a lembrar que, de entre vários fatores e símbolos, também a língua nos une enquanto comunidade. Na opinião de alguns, é um ponto de ligação dos mais fortes, tocando as fibras mais sensíveis do nosso eu.
Socorrendo-me das palavras do tradutor da versão portuguesa de a Demanda do Santo Graal, «‘mas ora leixa falar’ os textos», em vez de falar sobre o assunto, vou trazer para aqui alguns escritores que de forma bela, metafórica e determinante têm valorizado esta simbologia da língua portuguesa e das palavras que a constituem, promovendo a sua afirmação e, portanto, a sua importância para a nossa identidade, que tem feição global, já que a língua portuguesa é falada em todos os continentes, refletindo um aspeto identitário dos povos que a falam, que é indissociável do mar, que simultaneamente nos separa e liga.
Diz Fernando Pessoa: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita.”  [Livro(s) do Desassossego. Ed. Teresa Rita Lopes] Todos nós conhecemos esta citação, mas no seu contexto frásico (que raramente é referido) conseguimos percebê-la melhor.
Vergílio Ferreira, em 1991, acrescenta-lhe outra ideia: «Da minha língua vê-se o mar» [“A Voz do Mar”, in Espaço do Invisível 5], reforçando a simbologia desta identidade. José Afonso, refletindo poeticamente sobre a questão, “sou de uma vaga pátria carinhosa”, reconhece que “as palavras entontecem / quando dispersas levantam rumos vários” (Textos e Canções). Eugénio de Andrade, reforçando os sentimentos de afetividade incluídos no sentido de pertença a uma língua, afirma “Com palavras amo.” [Cristalizações].
Mia Couto conta-nos  a história da mana Poeirinha “que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.” [O Beijo da Palavrinha] E assim esta simbologia identitária transforma-se. A palavra mar, ao beijar-nos (quando a proferimos) toma conta de nós, leva-nos consigo. Na perspetiva que estamos a privilegiar, nós, falantes da língua portuguesa, passamos a ser parte dessa simbologia.
Podia ficar aqui citando autor após autor, já que praticamente todos têm escrito textos sobre a importância das palavras e da língua portuguesa, mas esta conversa já vai longa. Vou deixar-vos o prazer dessa descoberta nos livros que há aí por casa. Vão aos livros. Deixem a internet a descansar. É mais demorado, mas muito mais prazeroso. Enquanto se faz uma pesquisa em livro as coisas fantásticas que encontramos! Bilhetinhos antigos, frases sublinhadas que já tínhamos esquecido e muito mais…
Para acabar, vou deixar-vos com uma estrofe de Resendes Ventura, o poeta que foi meu companheiro por 41 anos, sem mais comentários.
Beijinhos,
Fátima Ribeiro de Medeiros

“Logo Existo” II
I
Como as palavras são a minha essência
sem mais filosofia que mo negue
procuro no sentido do meu ser
as palavras, palavras, as palavras.

As Palavras que eu Sou (livro inédito)





segunda-feira, 4 de maio de 2020

REGISTOS DE UMA QUARENTENA, OU MAIS.



Episódio 14

Quanto mede um metro? Em tempos que já lá vão os metros não eram todos iguais, uns mediam mais, outros mediam menos, dependendo muito da precisão dos entalhes feitos no varapau que servia de bitola.
Depois, há mais de duzentos anos, lá na França de Napoleão, uns senhores muito sensatos e inteligentes resolveram arranjar forma para que o metro fosse igual em todo o lado a começar pelo seu próprio país.
Então, voltas e mais voltas, decidiram que uma maneira simples e expedita seria medir o meridiano terrestre (o que passava por Paris claro), depois dividia-se por quatro e o resultado por dez milhões e tínhamos o metro. E, para que do feito ficasse memória, foi fundido um modelo, o tal metro-padrão, em platina iridiada, um luxo só possível pelo financiamento através de campanhas de angariação de fundos que Napoleão levou a efeito por toda a Europa e arredores.
A procura da verdade e a ânsia de rigor são apanágio do ser humano (tome-se como exemplo os números apresentados diariamente pela Sra Ministra da Saúde acerca das baixas provocadas pelo corona), daí que novos cientistas considerassem que o tal metro laboriosamente calculado com base no tamanho da Terra não media bem. O que mede bem é o metro calculado com base na velocidade da luz no vácuo! E não é que o conseguiram fazer. Agora um metro é a distância percorrida, no vácuo, por um raio de luz durante um intervalo de tempo correspondente a um segundo a dividir por cerca de trezentos milhões, estão a ver?
Mas esta medida da distância entre dois pontos, tem actualmente um uso alternativo: mede distanciamento social, que é uma coisa com raízes na Sociologia. O distanciamento de duas unidades daquela medida é o limiar de segurança, menos do que isso é perigoso.
Com toda a propriedade se diria afastamento físico, mas não seria bonito, nem ficava bem. Pior seria que as pessoas na iminência de se cruzarem, dentro do limiar de segurança fossem aconselhadas a dizer vade retro!

3 de Maio de 2020.

Sanchez Antunes