domingo, 14 de junho de 2020

REGISTOS DE UMA QUARENTENA OU MAIS.


Episódio 16

Com a pandemia sob algum controle, começa a diminuir o fluxo de sugestões, mais ou menos criativas, para ocupação do tempo em confinamento com que pessoas piedosas, animadas de boas intenções, nos vinham perturbando os momentos contemplativos que o recolhimento proporcionava. Vida contemplativa é, por excelência, distensão do corpo e da alma, repouso estático ocupando a totalidade do ser suspenso no éter. Era na contemplação que os antigos Gregos encontravam a felicidade suprema.
Facilmente se compreenderá que nem todos conseguirão deixar-se invadir pela serenidade de ânimo, quietude e tranquilidade, num ambiente de confinamento forçado, ainda que na casa que normalmente habitam. Nesse confinamento só se sentirá isolado quem não for criativo, expressão que não é minha, como não é meu tudo o que aqui escrevo, são coisas que li ou ouvi em qualquer lado, mas que a outros pertencem.
Como alguém escreveu, não fazer nada é preciso, a preguiça é fundamental para a criatividade. A aversão ao trabalho não é não fazer nada é fazer mais com menos esforço. É a lei do menor esforço que fez avançar a Humanidade. A roda tinha forçosamente que ser inventada.
Um professor e filósofo português, de cujas ideias muito gosto, dizia que o Homem não nasceu para trabalhar, mas sim para se divertir, querendo dizer que o Homem pode divertir-se fazendo aquilo que gosta de fazer. De facto, quando fantasia e trabalho coincidem a vida é uma diversão. A mistura do ócio contemplativo com a actividade física e braçal confere ao trabalho dignidade e poesia, separando-o da figura única de sofrimento, plasmado na expressão tão conhecida entre nós ocidentais “ganharás o pão de cada dia com o suor do teu rosto”.
Das inúmeras entrevistas que passam nas televisões ou que se escrevem nos jornais, não me lembro de algum dos entrevistados ter dito que não gosta do que faz, desde as mais modestas às mais qualificadas profissões. Mentem os pobres coitados. Numa sociedade como a nossa, desigual, repressiva e alienante o trabalho não liberta, escravisa, é coisa penosa, salvem-se as raras e felizes excepções.
A actual crise sanitária leva já a encarar que outras formas de trabalho são viáveis desde que outras maneiras de encarar a vida também o sejam. Esperemos que a I. A. produza os meios necessários para retirarem da actividade humana o que ela tem de penoso, para que a sociedade do cansaço onde, perante tarefas por qualquer forma penosas, proliferam as atitudes de “I would prefer not to” , seja substituída pela sociedade da preguiça, de uma preguiça que se oponha ao trabalho forçado, daquela preguiça que os sociólogos chamam heroica, que é criativa e impulsionadora do uso racional dos recursos naturais e tecnológicos de que dispomos.
           

12 de Junho de 2020.
Sanchez Antunes

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