Faz hoje quinze dias que
me aprisionei em casa. Os noticiários falavam de uma nuvem terrivelmente ameaçadora que pairava sobre os
telhados do burgo e que, quando desabasse em saraiva, ai de quem não se tivesse
acautelado. Visto isso, resguardei-me sem saber até quando e sem plano algum
que me ajudasse a mitigar a incerteza.
Habituado que fora desde
cedo à vadiagem e ao convívio, todo eu desenhado para viver a rua, a perspetiva
de tão impreparado recolhimento abraçou-me como gelo. Porém, foi coisa de pouco
mais que um instante, pois logo comecei a vislumbrar que, uma vez que tinha de
ser assim, esse tempo que perspetivara ser poço de inércia, com algum jeitinho,
poderia transitar para tempo de oferta que me desse para, finalmente, fazer
coisas que sempre adiadas ou mal pegadas, podiam agora ver sua e minha
oportunidade.
Primeiro, acautelar-me,
evitando o que trouxesse consigo carga económica. Logo: começando por
releituras desafiantes que há tempo de mais encalhadas. Entretanto, pensar,
escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver com a comunidade de
familiares que, tal como eu, estão retidos no mesmo espaço.
Mas o que de facto mais
espero atingir com este rol de escolhas e disponibilidade de tempo, é
preparar-me para melhor aceder à pratica do maravilhoso culto da
imaginação. E isto porque, vindo desde
há muito a suspeitar que a imaginação, embora tida como coisa outra, seja do
mesmo corpo do pensar, a sua parte livre, aquela que indomesticável se oferece
à arte e à vida surpreendente e inesgotável e que, nos trazendo sob espanto, é
ela que nos faz parar, mas logo andar. Vou espreitar e ver se me esclareço.
30 Março 2020
João
Santiago
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