terça-feira, 31 de março de 2020

PROXIMIDADE



Faz hoje quinze dias que me aprisionei em casa. Os noticiários falavam de uma nuvem  terrivelmente ameaçadora que pairava sobre os telhados do burgo e que, quando desabasse em saraiva, ai de quem não se tivesse acautelado. Visto isso, resguardei-me sem saber até quando e sem plano algum que me ajudasse a mitigar a incerteza.
Habituado que fora desde cedo à vadiagem e ao convívio, todo eu desenhado para viver a rua, a perspetiva de tão impreparado recolhimento abraçou-me como gelo. Porém, foi coisa de pouco mais que um instante, pois logo comecei a vislumbrar que, uma vez que tinha de ser assim, esse tempo que perspetivara ser poço de inércia, com algum jeitinho, poderia transitar para tempo de oferta que me desse para, finalmente, fazer coisas que sempre adiadas ou mal pegadas, podiam agora ver sua e minha oportunidade.

Primeiro, acautelar-me, evitando o que trouxesse consigo carga económica. Logo: começando por releituras desafiantes que há tempo de mais encalhadas. Entretanto, pensar, escrever, repousar com serenidade, meditar e conviver com a comunidade de familiares que, tal como eu, estão retidos no mesmo espaço.

Mas o que de facto mais espero atingir com este rol de escolhas e disponibilidade de tempo, é preparar-me para melhor aceder à pratica do maravilhoso culto da imaginação.  E isto porque, vindo desde há muito a suspeitar que a imaginação, embora tida como coisa outra, seja do mesmo corpo do pensar, a sua parte livre, aquela que indomesticável se oferece à arte e à vida surpreendente e inesgotável e que, nos trazendo sob espanto, é ela que nos faz parar, mas logo andar. Vou espreitar e ver se me esclareço.


30 Março 2020
João Santiago      

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