segunda-feira, 27 de julho de 2020

CORRESPONDÊNCIA. Às vezes chegam cartas...1+1

Caro Amigo


A verdade é que parece que estamos a viver uma vida suspensa de algo que estará para vir e sobre a qual não vislumbramos a menor pista nem explicação: muito se vai ouvindo por aí, mas de concreto nada se tem. Estamos de facto a viver uma era de indefinição que parece ser o prelúdio de qualquer coisa que transcende o meu entendimento.

Neste momento, o medo que não queria sentir vai-se instalando e a saudade do que se tem vindo a perder vai aumentando. Depois disto, como será a nova normalidade? Certamente nada voltará a ser como antes e muitas marcas ficarão: físicas, psicológicas, sociais. Porque isolamento, só quando é voluntário é que poderá não deixar marca. E isolamento, desconfiança e intolerância é o que alimenta hoje os nossos dias. 

Esperemos que não falte muito para nos voltarmos a juntar. "Que falta me faz aquela casa..."

AA

Cara Amiga,

Demorei a responder pois a sua mensagem reflecte afinal o que vai no fundo de cada um de nós: a perplexidade, a angústia, a incompreensão pelo desconhecido que nos amputa tudo aquilo que faz com que a vida mereça ser vivida: e falo de coisas simples, como um abraço de um familiar querido, o beijo de um neto ou a partilha do quotidiano com os amigos, sem medo ou receio.

Apetece dizer “já passa”, sabendo que irão ser muitos meses do mesmo, com a agravante de que a miséria começa a grassar em muitas famílias, e com isso, virão ao de cima coisas de que não vamos gostar. Mas a força tem de vir de uma reinvenção dos gestos, simples e amigos. Há que recriar, digo eu, sem saber ainda como…

Obrigado pela mensagem, que não deixou de me comover, pois mexeu com aquilo que nós temos de mais íntimo. Um abraço,

Arfemo

MÁSCARAS

                                           Teresa Carreira, Curso de Fotografia UNISETI

domingo, 5 de julho de 2020

NUVENS BRANCAS


Nuvens brancas

Daqui da minha varanda
Alvas farófias se espreguiçam pelo céu
Vão escondendo o sol
Mas como são belas
Navegando no azul

Esperando-me no colo
As Mulheres Que Compram Flores…

02.Julho.2020
Natércia Fraga


segunda-feira, 29 de junho de 2020

REGISTOS DE UMA QUARENTENA, OU MAIS




Episódio 17
            A pandemia do covid-19 tem sido fértil em determinações, conselhos e opiniões, controversas, fruto das características ainda em estudo deste malfadado vírus. Não faltaram até mezinhas de fabrico caseiro, tendo como expoente máximo a injecção intravenosa de detergente receitada pelo presidente dos Estados Unidos da América.
            Sem dúvida que o uso da máscara é um daqueles aspectos que mais tem sido badalado desde que a Sra Dra Graça Freitas, Directora Geral da Saúde, começou a falar do assunto.
            Não conheço aquela senhora de lado nenhum, mas apareceu na TV com um ar tão ternurento de avozinha que me faz sentir por ela um grande carinho, reforçado pelas críticas que lhe foram dirigidas numa situação em que ninguém sabia exactamente o que fazer. E então era um dia usa máscara que é muito bom, no outro não usem que é perigoso e voltava-se ao princípio.
            A maneira como vejo o uso da máscara faz-me recordar um episódio que ouvi contar há mais de cinquenta anos a respeito de uma equipe que tinha estado em missão sanitária a pedido do governo de um país daqueles que na altura se chamavam PVD. Contava-se que numa aldeia em zona recôndita desse país ia ser levada a efeito, como experiência, uma acção de controlo da natalidade, através do uso da pilula anticonceptiva. Para que a coisa funcionasse correctamente, para além das explicações, juntamente com o fármaco foi entregue às mulheres um artefacto que tinha um pauzinho no qual estavam enfiadas vinte e quatro bolinhas brancas e creio que quatro bolinhas vermelhas. O esquema era tomar a pílula diariamente e fazer deslizar uma bolinha branca. Quando chegasse às vermelhas não se tomava a pastilha, só se fazia a passagem diária de uma bolinha vermelha e quando chegassem ao fim voltavam às bolinhas brancas e à pílula.
            Quando uns meses mais tarde a equipe voltou à aldeia para apreciar os resultados, verificou que as mulheres que tinham aderido ao esquema estavam todas grávidas. Porém, todas elas tinham passado, rigorosamente todos os dias, as bolinhas de um lado para outro, mas não tomaram as pílulas: é que, segundo elas, o efeito não estaria no medicamento, mas no acto de feitiçaria de passar as bolinhas de um lado para o outro.
            Mas que relação terá esta história com o uso da máscara. Tem e muito. Das pessoas que usam máscara e não são muitas fora dos locais em que ela é obrigatória, vejo que há pessoas, raras, que usam a máscara como é aconselhável o seu uso, mas outras há que a usam das formas mais variadas e criativas: usam-na na testa, no pulso, no braço, no cotovelo, pendurada numa só orelha, na armação dos óculos ou no botão da camisa, fixa no boné, com o nariz de fora, à barbela (que é o mais comum), pendurada no retrovisor do automóvel, no bolso das calças, na mala (caso das senhoras) etc. Tal como naquela aldeia perdida no tempo e no espaço, também cá o que importa é o acto de feitiçaria de exibição da máscara, perante o qual o covid-19 foge a sete pés.
Deus nos valha.
             
24 de Junho de 2020
Sanchez Antunes

FIM DE DIA

                                    Francisco de Santos. Curso de Fotografia da UNISETI

segunda-feira, 22 de junho de 2020

VISITA ÀS TERRAS DO ABSURDO




Mal chegou aquele lugar, situado lá para os cabos do absurdo, e então era de ver como o próprio surpreendente acorria a tropeçar nele. Reparou
facilmente que a quase totalidade dos moradores olhava o mover do mundo à sua volta, mas olhava para não ver. Reparou que havia escolas onde aos habitantes se ensinava essa estranha pratica de olhar para não ver, usando-se, ainda, um processo de indução que os levava a convencerem-se que, mesmo olhando, diziam não ver o que estavam vendo. Reparou que o próprio lugar era uma máquina que, tendo embora muitos olhos, olhava, não em função do ver nítido, mas em função do não ver nítido. Reparou, também, que isso era gerador de grande confusão e de maior sofrimento e que se devia à sacralização de um embuste social a que chamavam economia.

E, então, deu-se a interrogar. Como é que tanto investimento na cegueira prepara alguma coisa ou alguém para devires trágicos que, como elos de corrente, estão sempre a chegar? Com o acréscimo de que, o discernimento trazido pelo olhar de ver, informaria o todo que, podem não ser sempre as tragédias que se abatam sobre os lugares, mas serem os erros de caminho a levarem os lugares à tragédia.  
 Claro que toda a vida é um lugar rodeado de perigos. Mas um enxame de vespas será tão perigoso quanto nos afastarmos dele ou nos atrevamos a tentativas de aniquilação. Havia depois ali uma grande confusão que instalava todos os absurdos: nunca souberam discernir a diferença abissal que havia entre o quererem viver, e o darem cabo da vida, tarefa a que se dedicavam com bastante zelo.

22 de Junho 2020
João Santiago

SONHOS COLORIDOS

                                                                 Sonhos Coloridos. Carlos Oliveira. 
                                                                        Curso de Fotografia UNISETI

domingo, 21 de junho de 2020

MANIFESTO DE DOR

Manifesto de dor

É uma teia cruzada de dores
Já não sei onde vivo já não sei onde estou já não sei sequer se estou em algum lugar
Já nem sei se sou
As notícias todas tão más inundam as televisões os facebooks os jornais as revistas
E uma pessoa entra numa ebulição de aflição
De afogamento
Mais mortos de Covid e mais doentes de Covid
A miséria as casas sem espaço (quando há casa!) os transportes públicos a falta de emprego
A vida sem amanhã hoje sabe-se lá como vai ser
Onde mora o dinheiro onde mora o pão onde se compra a fruta onde se compra a carne o peixe os vegetais
Que se põe na mesa que se dá aos filhos para comer
Que sorrisos se pode oferecer quando por dentro se vai morrendo aos poucos
Como se sai do lixo quando se nasceu no lixo
Como se faz para virar a vida de pernas para o ar e matar a injustiça destas vidas tantas tão miseráveis tão desesperadas a caírem de podres
Afogadas na sua própria miséria?
Como podem viver sem dor os poderosos deste mundo
Como podem ignorar a mortandade de tantos os ricos deste mundo
Como pode haver quem defenda esta ignomínia
Já não somos pessoas já nenhum de nós é humano já não somos dignos de nada dizer de nada fazer de nada pensar
Já não somos dignos da Vida que um dia nos foi dada
Nós e os outros os poucos outros mas tão ricos tão poderosos tão felizes nos seus palácios nos seus condomínios fechados
Indiferentes aos que sofrem aos que morrem aos que se arrastam como vermes por este planeta que não nos pertence
Como é possível tanta ignomínia?

Não sei fazer senão perguntas já não tenho respostas para nada
A minha própria vida esvaindo-se na lama de tanta desgraça

13 Junho 2020
Natércia Fraga
     

domingo, 14 de junho de 2020

REGISTOS DE UMA QUARENTENA OU MAIS.


Episódio 16

Com a pandemia sob algum controle, começa a diminuir o fluxo de sugestões, mais ou menos criativas, para ocupação do tempo em confinamento com que pessoas piedosas, animadas de boas intenções, nos vinham perturbando os momentos contemplativos que o recolhimento proporcionava. Vida contemplativa é, por excelência, distensão do corpo e da alma, repouso estático ocupando a totalidade do ser suspenso no éter. Era na contemplação que os antigos Gregos encontravam a felicidade suprema.
Facilmente se compreenderá que nem todos conseguirão deixar-se invadir pela serenidade de ânimo, quietude e tranquilidade, num ambiente de confinamento forçado, ainda que na casa que normalmente habitam. Nesse confinamento só se sentirá isolado quem não for criativo, expressão que não é minha, como não é meu tudo o que aqui escrevo, são coisas que li ou ouvi em qualquer lado, mas que a outros pertencem.
Como alguém escreveu, não fazer nada é preciso, a preguiça é fundamental para a criatividade. A aversão ao trabalho não é não fazer nada é fazer mais com menos esforço. É a lei do menor esforço que fez avançar a Humanidade. A roda tinha forçosamente que ser inventada.
Um professor e filósofo português, de cujas ideias muito gosto, dizia que o Homem não nasceu para trabalhar, mas sim para se divertir, querendo dizer que o Homem pode divertir-se fazendo aquilo que gosta de fazer. De facto, quando fantasia e trabalho coincidem a vida é uma diversão. A mistura do ócio contemplativo com a actividade física e braçal confere ao trabalho dignidade e poesia, separando-o da figura única de sofrimento, plasmado na expressão tão conhecida entre nós ocidentais “ganharás o pão de cada dia com o suor do teu rosto”.
Das inúmeras entrevistas que passam nas televisões ou que se escrevem nos jornais, não me lembro de algum dos entrevistados ter dito que não gosta do que faz, desde as mais modestas às mais qualificadas profissões. Mentem os pobres coitados. Numa sociedade como a nossa, desigual, repressiva e alienante o trabalho não liberta, escravisa, é coisa penosa, salvem-se as raras e felizes excepções.
A actual crise sanitária leva já a encarar que outras formas de trabalho são viáveis desde que outras maneiras de encarar a vida também o sejam. Esperemos que a I. A. produza os meios necessários para retirarem da actividade humana o que ela tem de penoso, para que a sociedade do cansaço onde, perante tarefas por qualquer forma penosas, proliferam as atitudes de “I would prefer not to” , seja substituída pela sociedade da preguiça, de uma preguiça que se oponha ao trabalho forçado, daquela preguiça que os sociólogos chamam heroica, que é criativa e impulsionadora do uso racional dos recursos naturais e tecnológicos de que dispomos.
           

12 de Junho de 2020.
Sanchez Antunes

PRAIA DA SAÚDE

                                           Fernando Claudino. CURSO DE FOTOGRAFIA

domingo, 7 de junho de 2020

CLUBE DE LEITURA PLUTÂO Jorge tente explicar ao seu peixe

Jorge tenta explicar ao seu peixe de aquário como funciona um submarino

JORGE
É tipo um barco, mas ao contrário. Estás a ver?

PEIXE
Não.

JORGE
O barco anda por cima da água. O submarino anda por baixo da água.

PEIXE
O que é a água?

JORGE
...

PEIXE
O que é a água, Jorge?

JORGE
A água é aquilo que está à tua volta. O meio onde vives.
É como o ar que eu respiro.

PEIXE
O ar? Essa matéria invisível e sufocante?

JORGE
A água é isso, mas em bom. Para ti.

PEIXE
Já percebi. Continua.

JORGE
Um submarino é uma grande estrutura de metal, oca e cheia de ar, que permite aos humanos explorar as profundezas dos oceanos.

PEIXE
Isso quer dizer que vocês, os humanos, construíram uma forma de sobreviver debaixo de água, através de um aparelho que contém o elemento essencial para a vossa sobrevivência?

JORGE
É isso mesmo!

PEIXE


JORGE
O que foi?

PEIXE
Deixa-me adivinhar: o contrário de um submarino é um sobremarino?

JORGE
Não. Não existe o contrário de submarino…

PEIXE
Então como se chama esta campânula de vidro onde estou enfiado?

JORGE
Ok, estou a perceber. Tu estás a insinuar que…

PEIXE
Não fui eu que comecei com as analogias, Jorge!

JORGE
Peço desculpa, nunca pensei que esta situação te incomodava.

PEIXE
Incomodar? Isto é humilhante!

JORGE
Se quiseres posso pôr-te numa banheira…

PEIXE
O que é uma banheira?

JORGE
É o contrário de um barco.

PEIXE
Outra vez?

JORGE
Sim, mas esta analogia é diferente.

PEIXE
Não podes usar o mesmo elemento para fazer duas analogias.
É preguiçoso.

JORGE
Ou então posso mudar-te para uma piscina...

PEIXE
O que é uma piscina?

JORGE
É o contrário de uma ilha

PEIXE
Como assim?

JORGE
É uma banheira gigante num sítio sem tecto!

PEIXE
O que é o tecto?

JORGE
É o contrário do chão!

PEIXE
Isto é tudo muito confuso. Quero voltar para casa!

JORGE
Para o mar?

PEIXE
O que é o mar?

JORGE
É uma sopa de peixe crua…

PEIXE


JORGE


PEIXE
O que é uma sopa de peixe?

JORGE
Não tens mais perguntas sobre submarinos?

 
FIM

Uma parceria com a UNISETI

sexta-feira, 5 de junho de 2020

PLÚMBEO

                                       Luis Duarte. CURSO DE FOTOGRAFIA. UNISETI.

DE ESTRANHEZA É FEITO ESTE TEMPO



Estranhos são os dias todos quase iguais
Estranhos somos nós neste medo que arrepia
Estranhas são as notícias que chegam das Américas
Tão longe que estão e no entanto tão perto
Tanta dor sem nome nos entra pela casa e escurece a vida
A falta de cuidados médicos os assassínios racistas a desigualdade na doença e na morte
A inominável miséria humana
O medo que me tolhe e a saudade de estar com as pessoas que amo
A incompreensão de tudo, os tempos tão diferentes que são
Desconhecidos os caminhos que iremos trilhar, que esperanças podemos acalentar que sonhos podemos sonhar
Que projectos podemos ambicionar
Como será a vida após esta devastação?
Só tenho perguntas não tenho respostas tenho muitas incertezas
Não conheço a cidade de que agora me isolo e fecho no casulo das minhas paredes
Parece-me até que já nem sei conversar.

Não sou, regra geral, pessimista. Tento sempre ver o lado positivo das coisas da vida. E geralmente o saldo é positivo, apesar de todas as dores. Mas, neste momento, em que vemos pessoas serem assassinadas apenas por a cor da sua pele ser negra; em que vemos o presidente de um país irmão, ou primo directo, banalizar a pandemia que nos atacou a todos, dizer “não sou coveiro”, “e daí?”, fazer churrascos enquanto tantos compatriotas morrem que nem tordos, sem assistência, sem humanidade, sem nada, num completo abandono e indiferença; em que ouvimos o presidente dos EUA dizer e desdizer o que ele próprio disse, menosprezar a ciência e os cientistas, dizer as patacoadas mais estúpidas que alguém pode dizer, ameaçar mandar as tropas para as ruas para pôr fim às manifestações; em que em tantos lugares do mundo a fome mata, a miséria mata, as guerras matam, os povos não têm mais país para viver, quando quando a vida vai regressar, em que, em que poderemos acreditar? Tanta ferocidade assanha as nossas vidas, de uma forma ou de outra, quando tudo isto nos engole, eu sinto um devastador desânimo, uma desesperada amargura, uma nuvem muito escura a pairar sobre as nossas cabeças.

05 Junho 2020
Natércia Fraga


quarta-feira, 3 de junho de 2020

NESTE TEMPO QUE NOS MOVE


Neste tempo que nos move

Já não há abraços
em colo aberto.
Já não há o “toque” tantas vezes
redobrado em doce afeto.

Há solidão e medo em rostos
pincelados de amargura.
Há a saudade de caminhos
trilhados em tanta ternura.

Há um pranto abafado,
sacudido por ventos de dureza.
Há um caminho quebrado
Por riscos de incerteza.

Há homens e mulheres
num heroísmo, numa forte aliança.
São eles o nosso orgulho,
 o nosso destino, a nossa esperança!

Há rostos abandonados
nos corredores da espera….
Há lutos não cumpridos.
há silêncios escondidos,
há o sonho de voltar a ser, novamente,
Primavera!

03 Junho 2020
Maria do Carmo Branco

EVOCANDO: MERCADO DO LIVRAMENTO 18 DE JUNHO 2018

                                                                                                enviado por A.F.

sábado, 16 de maio de 2020

O QUOTIDIANO INDUZIDO

A amizade

Transporta-se no bojo
ou na raiz,
e, quando exígua,
está ao alcance
de uma mão,
pura,
é sua irmã,
e mesmo inerte
aperta-nos,
deixando uma marca,
húmida,
de ternura.

16 Maio 2020
Arlindo Mota

REGISTOS DE UMA QUARENTENA OU MAIS.



Episódio 15

Ninguém se considere imune aos efeitos poderosíssimos daquilo a que já se chamou “a caixa que mudou o mundo”.
Num lado da caixa estão os atiradores. E há de tudo: snipers exímios, atiradores assim-assim e canastrões.
Do outro lado estão os alvos, que vão ser atingidos sem o saber.
Ao fascínio daquela “coisa”, não resistiu aquele pobre diabo que há um par de anos aparecia nas transmissões televisivas relativas a determinado clube do Norte, furando por entre a multidão que também queria ser filmada. A figura triste e desdentada do “emplastro” parecia que já fazia parte daquelas emissões.
E tantas vezes o sorriso desdentado surgiu nos ecrãs que alguém de bom coração (ouvi dizer que foi um conhecido humorista) resolveu oferecer uma dentadura nova ao infeliz, que passou a exibi-la com um sorriso rasgado de orelha a orelha. Há dias voltei a vê-lo no ecrã, que também já se chamou de pequeno ecrã e que hoje é do tamanho que se quiser, só limitado pelo tamanho da bolsa que tem que o pagar. o que me fez recordar o início da história.
Mas o fenómeno não para aqui, no “Zé-povinho”, pois sempre que uma figura de primeiro plano é entrevistada, vemos pessoas conhecidas ou ilustres desconhecidos que se querem dar a conhecer, colocando-se estrategicamente de modo a conseguirem um segundo plano que os coloque no “boneco”, não para obter uma nova dentadura, que bons dentes já eles têm mas para alcançar um bom naco onde ferrá-los. E também aqui há de tudo: políticos, empresários, professores universitários, enfim, aqueles que devem ser os melhores de nós.
É uma cena triste.  
 
14 de Maio de 2020.
Sanchez Antunes

DIAS DE DESCOBERTA OU O ABSURDO DOS DIAS



Debruço-me da varanda. Contemplo o céu carregado e a chuva que corre sobre os telhados, e desliza, murmurante, nos vidros das janelas. 
Mais uma desculpa para permanecer hoje no esconderijo da casa.
Espero que a chuva se esgote, que o céu aclare, para acabar com esta quietude, agora justificada pela água breve que rasga os céus e condiciona a liberdade ao parapeito de ferro da varanda.  
Estes dias cansam-me, porque sei que, inevitavelmente, os próximos serão iguais, e nada cansa mais do que viver dentro de uma roda, que incessantemente circula na mesma direcção.
O aguaceiro parece ter abrandado. 
Dos telhados ainda escorrem as últimas gotas e um gato perdido, com água colada no pêlo, salta dum esquecido recanto, e corre para longe. Foge apenas porque o seu instinto a isso o obriga. 
Olho o relógio. Parou às sete horas de um infindável dia, guardado nas dobras da memória, e nunca mais retomou a sua função de marcar o tempo.
Recusa-se a registar a solidão, o vazio, o silêncio. o absurdo e incompreensível tempo, onde a tarefa de reencontrar o sentido da vida, carregando o fardo dos dias iguais, me recorda o cruel castigo imposto ao rebelde Sísifo, eternamente condenado a recomeçar...
A chuva parou. 
O relógio marca as sete horas, da manhã ou da tarde, tanto faz...

13 de Maio de 2020
MAlice Silva

quinta-feira, 14 de maio de 2020

AMENDOEIRA

                                       Foto Elisabete Godinho. Curso de Fotografia. UNISETI

terça-feira, 12 de maio de 2020

PENEIRANDO OS DIAS



Oitava semana. Sinto-me a deambular pela casa, não porque me sinta deprimido, estou lúcido, bem lúcido, mas zangado, é exatamente isso. O meu espaço é outro, gosto de gostar das pessoas, gosto da proximidade, gosto da conversa, do olhar e, quando calha, até de uma disputa, de um confronto de ideias. Custa-me ver a alegria ser tão pouco: pequena onda logo submergida por outra maior, negra, confusa, deprimente. Que diabo se passará connosco que não sabemos criar espaços solares que durem a vida de cada um, transmissíveis e, entretanto, melhorados, de modo a premiarmos honradamente, aqueles que a seguir chegarem.
É um facto que o futuro é rumar-se para caminhos de incerteza; mas esse rumo poderia ser severamente atenuado se a mão humana se entregasse à provisão de fórmulas dignas, estas, por sua vez, certamente libertadoras de um caprichoso primarismo onde se patinha.
Fala-se que a epidemia que no momento nos ameaça e confina terá tido origem intencional ou negligente. Não sabemos se terá sido assim, o fogo cruzado de acusações trás consigo outros objetivos, não nos dá sumo para nada. Porém, é sabido, (e não nos fica bem sermos ingénuos nestas avaliações) que, por todo o lado, interesses ligados àquilo a que se chama defesa, ou segurança, investem, tanto em inteligência quanto em capitais, valores ocultados na manipulação de viros e bactérias visando a criação de armas de letalidade diabólica, cuja confirmação de eficácia, necessita ser comprovada no terreno.
Outra coisa, mas esta demasiadamente comprovada, é a de que a maldade humana não tem limites, e que nem a chegada dos adventos mais promissores que a história informa, fora capaz de debelar.
A vida não é má. A natureza não é má. Nada do que existe no universo se move com o propósito de nos castigar. A chuva é boa. O sol é bom. Até a dor, quase sempre quando aparece, é para nos avisar de possíveis erros de caminho.
O problema, talvez sejam os conceitos que geramos e nos servem de guia: o conceito de herói, o conceito de grandeza, o conceito de bem- fazer, os tantos conceitos que nos aglutinam e dogmatizam, eles mesmos tão visíveis, que a não tangibilidade dos mesmos devia carregar-nos de preocupações. Desculpem o desabafo, mas estou zangado de me roubarem à vida que, sem convívio, carece de sentido.

6 de Maio de 2020        
João Santiago


quinta-feira, 7 de maio de 2020

NO DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA


Caríssimas e caríssimos companheiros da UNISETI,
Então, têm lido muito, têm escrito alguma(s) coisa(s)? Já li de alguns, textos muito interessantes no blog que o Dr. Arlindo Mota coordena. Parabéns!
Começo por agradecer as mensagens escritas, as lindas imagens e os telefonemas que tenho recebido. É sempre um prazer falar com quem tem os mesmos interesses que nós e sobretudo com alguém que conhecemos e que estimamos. Bem hajam! Falar convosco ou ler-vos é um bálsamo para este viver entre quatro paredes em que tenho de continuar pelo menos por mais um mês.
Hoje celebra-se em todo o universo lusófono do Dia Mundial da Língua Portuguesa e, sendo terça-feira, o nosso dia, não poderia deixar de aparecer aqui. Só para um breve apontamento. Comemorando-se desde 2009, só em 2019 o Dia Mundial da Língua Portuguesa foi reconhecido e ratificado pela UNESCO. É mais uma data a lembrar que, de entre vários fatores e símbolos, também a língua nos une enquanto comunidade. Na opinião de alguns, é um ponto de ligação dos mais fortes, tocando as fibras mais sensíveis do nosso eu.
Socorrendo-me das palavras do tradutor da versão portuguesa de a Demanda do Santo Graal, «‘mas ora leixa falar’ os textos», em vez de falar sobre o assunto, vou trazer para aqui alguns escritores que de forma bela, metafórica e determinante têm valorizado esta simbologia da língua portuguesa e das palavras que a constituem, promovendo a sua afirmação e, portanto, a sua importância para a nossa identidade, que tem feição global, já que a língua portuguesa é falada em todos os continentes, refletindo um aspeto identitário dos povos que a falam, que é indissociável do mar, que simultaneamente nos separa e liga.
Diz Fernando Pessoa: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita.”  [Livro(s) do Desassossego. Ed. Teresa Rita Lopes] Todos nós conhecemos esta citação, mas no seu contexto frásico (que raramente é referido) conseguimos percebê-la melhor.
Vergílio Ferreira, em 1991, acrescenta-lhe outra ideia: «Da minha língua vê-se o mar» [“A Voz do Mar”, in Espaço do Invisível 5], reforçando a simbologia desta identidade. José Afonso, refletindo poeticamente sobre a questão, “sou de uma vaga pátria carinhosa”, reconhece que “as palavras entontecem / quando dispersas levantam rumos vários” (Textos e Canções). Eugénio de Andrade, reforçando os sentimentos de afetividade incluídos no sentido de pertença a uma língua, afirma “Com palavras amo.” [Cristalizações].
Mia Couto conta-nos  a história da mana Poeirinha “que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.” [O Beijo da Palavrinha] E assim esta simbologia identitária transforma-se. A palavra mar, ao beijar-nos (quando a proferimos) toma conta de nós, leva-nos consigo. Na perspetiva que estamos a privilegiar, nós, falantes da língua portuguesa, passamos a ser parte dessa simbologia.
Podia ficar aqui citando autor após autor, já que praticamente todos têm escrito textos sobre a importância das palavras e da língua portuguesa, mas esta conversa já vai longa. Vou deixar-vos o prazer dessa descoberta nos livros que há aí por casa. Vão aos livros. Deixem a internet a descansar. É mais demorado, mas muito mais prazeroso. Enquanto se faz uma pesquisa em livro as coisas fantásticas que encontramos! Bilhetinhos antigos, frases sublinhadas que já tínhamos esquecido e muito mais…
Para acabar, vou deixar-vos com uma estrofe de Resendes Ventura, o poeta que foi meu companheiro por 41 anos, sem mais comentários.
Beijinhos,
Fátima Ribeiro de Medeiros

“Logo Existo” II
I
Como as palavras são a minha essência
sem mais filosofia que mo negue
procuro no sentido do meu ser
as palavras, palavras, as palavras.

As Palavras que eu Sou (livro inédito)





segunda-feira, 4 de maio de 2020

REGISTOS DE UMA QUARENTENA, OU MAIS.



Episódio 14

Quanto mede um metro? Em tempos que já lá vão os metros não eram todos iguais, uns mediam mais, outros mediam menos, dependendo muito da precisão dos entalhes feitos no varapau que servia de bitola.
Depois, há mais de duzentos anos, lá na França de Napoleão, uns senhores muito sensatos e inteligentes resolveram arranjar forma para que o metro fosse igual em todo o lado a começar pelo seu próprio país.
Então, voltas e mais voltas, decidiram que uma maneira simples e expedita seria medir o meridiano terrestre (o que passava por Paris claro), depois dividia-se por quatro e o resultado por dez milhões e tínhamos o metro. E, para que do feito ficasse memória, foi fundido um modelo, o tal metro-padrão, em platina iridiada, um luxo só possível pelo financiamento através de campanhas de angariação de fundos que Napoleão levou a efeito por toda a Europa e arredores.
A procura da verdade e a ânsia de rigor são apanágio do ser humano (tome-se como exemplo os números apresentados diariamente pela Sra Ministra da Saúde acerca das baixas provocadas pelo corona), daí que novos cientistas considerassem que o tal metro laboriosamente calculado com base no tamanho da Terra não media bem. O que mede bem é o metro calculado com base na velocidade da luz no vácuo! E não é que o conseguiram fazer. Agora um metro é a distância percorrida, no vácuo, por um raio de luz durante um intervalo de tempo correspondente a um segundo a dividir por cerca de trezentos milhões, estão a ver?
Mas esta medida da distância entre dois pontos, tem actualmente um uso alternativo: mede distanciamento social, que é uma coisa com raízes na Sociologia. O distanciamento de duas unidades daquela medida é o limiar de segurança, menos do que isso é perigoso.
Com toda a propriedade se diria afastamento físico, mas não seria bonito, nem ficava bem. Pior seria que as pessoas na iminência de se cruzarem, dentro do limiar de segurança fossem aconselhadas a dizer vade retro!

3 de Maio de 2020.

Sanchez Antunes


quinta-feira, 30 de abril de 2020

AGUARELA


Luz cinzenta pelas frestas da persiana. Acordei com o dia choroso. Subi a persiana e abri as janelas. Não chovia ainda do céu quase negro que me deu os bons dias. Mais tarde choveu e comoveu-me a água escorrendo pelas janelas da cozinha.
Agora, já cerca das 4 e meia da tarde, o sol entra pela janela e eu sorrio. Gosto do sol. Do céu mesclado de azul cinzento e branco. Da esperança de alegria com que o sol aquece me aquece o sorriso. E o rosto.
Curiosa, até para mim, a maneira como tenho vivido este isolamento. Só em casa (com a minha gata Safo, claro!), quase nunca falando com alguém, conversando muito com uma outra quase igual a mim que anda por aqui, nunca me deixando sossegada, obrigando-me a pensar-me, tenho gozado de uma serenidade que não me é muito habitual. Parece que de mim se evaporou um peso que sempre me tem acompanhado.

Tenho lido muito. O último livro foi “O Filho de Mil Homens”, de Valter Hugo Mãe. O próximo? Não sei ainda…

19 de Abril de 2020
Natércia Fraga


DIAS DE DESCOBERTA


São 4 horas da tarde, aquela hora do dia em que é cedo e tarde para tudo. Grande parte do dia já passou, mas outro tanto, teimosamente, ainda resiste.
Esgotaram-se as tarefas repetidas para vestir o tempo, nenhum acontecimento novo para registar, a chuva cancelou os passeios na varanda e,  por detrás de um céu de cinza, o sol aguarda para espreitar.
Resto eu e as minhas contradições, divagando numa casa demasiado grande e demasiado pequena, demasiado aberta para a rua e demasiado fechada para a vida.  
No silêncio da solidão descobri equívocos, ideias que rejeitava e agora ressurgem, realçadas pelo egocentrismo a que estes dias obrigam.
Descobri : 
- a dificuldade de rir, porque rir é um acto de alegria partilhada
- a tendência de valorizar situações que, antes, não teriam importância nenhuma
- a facilidade de acenar e mentir a um "olá tudo bem?" com a negra verdade fechada no cofre da mão
- que o tempo é grande demais e não o consigo encher por mais que esprema a imaginação 
- a inutilidade de um "diário", porque, por muito que me esforce, um dia,  ninguém vai acreditar que isto aconteceu!

Entretanto lá fora morre uma pessoa infectada a cada hora que passa, as estações de TV informam que vem aí muito calor e mostram loiros e convidativos areais, e há uma grande preocupação com o início do campeonato de futebol.
Como dizia D. Fabrizio Salina no eterno " O Leopardo" de  Tomasi de Lampedusa, "...é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma".

29 de Abril de 2020
MAlice Silva

terça-feira, 28 de abril de 2020

ENTRE OS FINAIS DE ABRIL E O COMEÇO DE MAIO, FRAGMENTOS DA MEMÓRIA


Naquela madrugada, um pássaro expressivamente maravilhoso pousou na torre mais alta da cidade. Pela manhã, ao atravessarem a praça, as pessoas detiveram-se perante aquele encantamento que desde o alto as atraía. E, assim, se mantiveram sem arredar pé, enquanto entoavam cantos iluminados por uma rara alegria, como quem aproveitando tão elevado olhar, se entregassem à rápida expurga de indigestas e mal-amadas narrativas que anos a fio vieram tragando. Mas o pássaro é pássaro de muitos caminhos a fazer e, um dia, ergueu-se de asas amplas espelhadas pelo sol, deu várias voltas no céu apelante, como quem convida a seguirem-no e, depois, encaminha-se rumo ao horizonte. As pessoas não compreendendo o apelo não o seguiram. Viram-no distanciar-se, distanciar-se mais e mais. Ficando desse marcante encontro um resto de  palavras que, agarradas a todos, veem uma vez por ano, dar uma voltinha em torno da nossa lembrança.

                                               “”””””””””””””””””””””

Pousamos a substância sobre a pedra fria do balcão e trocamo-la por palavras. Porém, as palavras são símbolos para a prática do dizer (e, tantas vezes do enganar). E, ainda mesmo que contorcidas, esticadas ou manipuladas recorrendo-se às mais engenhosas formas. Nunca saberão ser mais que palavras.

                                               “”””””””””””””””””””””

E porque naquele dia vieste para falar da liberdade, escutei-te um dia inteiro sem dizer nada. Mas, já eram tantas as palavras acumuladas entre nós, que sem repararmos, as demasiadas palavras separaram-nos.

                                               “””””””””””””””””””””

Não sei se saberemos algum dia escrever uma história que tenha portas por todo o lado, para que as personagens possam esquivar-se, sempre que o narrador as encaminhe para as proximidades do labirinto.

 27 de Abril de 2020
João Santiago


sábado, 25 de abril de 2020

O QUOTIDIANO INDUZIDO

Hoje não desci a avenida não perguntes porquê
não, não era o pólen como da outra vez…
hoje fiquei olhando do outro lado do rio
como se fora o dia de todos-os-santos
que vi tudo de negro ou os meus olhos já não vêm tanto?

Hoje atravessei a ponte meia lisboa sob o meu olhar
e tu não estavas lá para me receber
porque te foste embora mãe?
Desta vez não me tiravam dos teus braços
e a ponte já mudou de nome…

Porquê as lágrimas mãe? Onde está aquela força
disfarçada de sorriso enquanto me afagavas
e as sombras deambulavam pela casa?

Não são perguntas mãe ou lendas de rainha
(nem cravos nem rosas)
a força que guardo das tuas mãos nas minhas


25 de Abril de 2020
Arlindo Mota

DIAS DE DESCOBERTA


DIAS de DESCOBERTA
Hoje é um dia rico de recordações. Aquele dia em que, inevitavelmente, se coloca a mesma pergunta : "onde estavas no 25 de Abril de 1974 ?" .
O único dia que integra a memória colectiva, que obriga milhares de pessoas a  recuar "ao dia inicial", em que o gesto ficou suspenso na incerteza das notícias, o dia de todas as esperanças, um dia gravado no passado, cada vez mais distante, mas nem por isso menos presente .
Se a idade nos ensina a gerir o tempo, o silêncio e a memória, ou que dela vai permanecendo, ensina-nos também a redimensionar o presente para encontrar no futuro, pelo menos, uma razão que o justifique.
Ensina-nos a  eliminar tudo o que é inútil, e a deixar espaço para que a vida ainda nos surpreenda, com a alegria de uma realidade agora só imaginada.

25 de Abril de 2020
MALICE SILVA