Início da sexta semana de
recolhimento. A manhã está chuvosa, há um cansaço que não é bem físico, talvez
o peso já, de uma tristeza que se aproxima. Salvou-me deste momento de tensão a
chegada, desse, que a miúdo me aparece para nos atermos a momentos de agradável
conversa. Esse, de quem pouco sei, e muito menos de onde vem; sinto-o quando
chega, conversamos serenamente, e abala quando lhe dá.
E, desta vez, foi ele que iniciou a conversa
apresentando-se com uma pergunta: - Irmão, tu acreditas que passada a tempestade,
a cidade, como assim prometeu, vai começar a montagem dos andaimes para a
edificação de uma maneira de ser mais contemplativa, tendo em mente desviar-se
dos caminhos que a trouxeram ao desastre?
- Acreditas mesmo nisso,
irmão?
- Não, não acredito,
respondi. Sei que as promessas são como a loiça que deixamos cair e parte-se:
imediatamente a seguir ao constrangimento, varremos os cacos para o lixo e
logo, depois, o esquecimento fecha o caso.
- A cidade, acrescentou
ele, é hoje um delírio perigoso virado contra si mesma. Incapaz, desde à muito,
de cumprir os propósitos que a fundou, começou a encher-se de construções
inúteis. Incapaz já, de reparar, que do esterco dessas inutilidades se vinha
levantando uma selva outra, visível e invisível, de capacidade renovável e, se
calhar imbatível. Surpreendente, é que as organizações que estudam a saúde dos
comportamentos estejam tão pouco presentes a denunciar tamanho absurdo.
Conversamos ainda sobre
poesia, e escrevemos um poema de fuga para se viver numa cidade cercada por si
própria.
Nem da cidade sabendo nem
do caminho,
e menos ainda de palavras
que como parede o detivessem.
Naquela tarde desamparada,
deu-se a bebidas.
E quando de esse ir por aí
tanto, um resto de si
corre a lembra-lo, que do
que havendo em si já tudo ardia,
levantou-se de embaraçados
gestos,
a entregar aos bolsos(
inquietas asas)
o que por beber, de resto,
havia.
Ao sair da taberna
julgou estar a ser
esfaqueado
e caiu redondo num chão
que, a seu ver, já ele
mesmo se arredondava.
Já tarde é um corpo no
chão.
Umas mãos que tateiam num
corpo.
Se calhar em busca de um
nome.
Se calhar em busca de si.
Há uma cabeça que se ergue
a custo.
Um corpo que estremece de
súbito,
que estremece de espanto,
Há um olhar de olhos
imensos. Um olhar de uma vez que é única.
Há a descoberta ao
virar-se para desconhecido lado,
Que as paredes do mundo
Sabiam dançar.
23 de Abril 2020
João Santiago