quinta-feira, 30 de abril de 2020

AGUARELA


Luz cinzenta pelas frestas da persiana. Acordei com o dia choroso. Subi a persiana e abri as janelas. Não chovia ainda do céu quase negro que me deu os bons dias. Mais tarde choveu e comoveu-me a água escorrendo pelas janelas da cozinha.
Agora, já cerca das 4 e meia da tarde, o sol entra pela janela e eu sorrio. Gosto do sol. Do céu mesclado de azul cinzento e branco. Da esperança de alegria com que o sol aquece me aquece o sorriso. E o rosto.
Curiosa, até para mim, a maneira como tenho vivido este isolamento. Só em casa (com a minha gata Safo, claro!), quase nunca falando com alguém, conversando muito com uma outra quase igual a mim que anda por aqui, nunca me deixando sossegada, obrigando-me a pensar-me, tenho gozado de uma serenidade que não me é muito habitual. Parece que de mim se evaporou um peso que sempre me tem acompanhado.

Tenho lido muito. O último livro foi “O Filho de Mil Homens”, de Valter Hugo Mãe. O próximo? Não sei ainda…

19 de Abril de 2020
Natércia Fraga


DIAS DE DESCOBERTA


São 4 horas da tarde, aquela hora do dia em que é cedo e tarde para tudo. Grande parte do dia já passou, mas outro tanto, teimosamente, ainda resiste.
Esgotaram-se as tarefas repetidas para vestir o tempo, nenhum acontecimento novo para registar, a chuva cancelou os passeios na varanda e,  por detrás de um céu de cinza, o sol aguarda para espreitar.
Resto eu e as minhas contradições, divagando numa casa demasiado grande e demasiado pequena, demasiado aberta para a rua e demasiado fechada para a vida.  
No silêncio da solidão descobri equívocos, ideias que rejeitava e agora ressurgem, realçadas pelo egocentrismo a que estes dias obrigam.
Descobri : 
- a dificuldade de rir, porque rir é um acto de alegria partilhada
- a tendência de valorizar situações que, antes, não teriam importância nenhuma
- a facilidade de acenar e mentir a um "olá tudo bem?" com a negra verdade fechada no cofre da mão
- que o tempo é grande demais e não o consigo encher por mais que esprema a imaginação 
- a inutilidade de um "diário", porque, por muito que me esforce, um dia,  ninguém vai acreditar que isto aconteceu!

Entretanto lá fora morre uma pessoa infectada a cada hora que passa, as estações de TV informam que vem aí muito calor e mostram loiros e convidativos areais, e há uma grande preocupação com o início do campeonato de futebol.
Como dizia D. Fabrizio Salina no eterno " O Leopardo" de  Tomasi de Lampedusa, "...é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma".

29 de Abril de 2020
MAlice Silva

terça-feira, 28 de abril de 2020

ENTRE OS FINAIS DE ABRIL E O COMEÇO DE MAIO, FRAGMENTOS DA MEMÓRIA


Naquela madrugada, um pássaro expressivamente maravilhoso pousou na torre mais alta da cidade. Pela manhã, ao atravessarem a praça, as pessoas detiveram-se perante aquele encantamento que desde o alto as atraía. E, assim, se mantiveram sem arredar pé, enquanto entoavam cantos iluminados por uma rara alegria, como quem aproveitando tão elevado olhar, se entregassem à rápida expurga de indigestas e mal-amadas narrativas que anos a fio vieram tragando. Mas o pássaro é pássaro de muitos caminhos a fazer e, um dia, ergueu-se de asas amplas espelhadas pelo sol, deu várias voltas no céu apelante, como quem convida a seguirem-no e, depois, encaminha-se rumo ao horizonte. As pessoas não compreendendo o apelo não o seguiram. Viram-no distanciar-se, distanciar-se mais e mais. Ficando desse marcante encontro um resto de  palavras que, agarradas a todos, veem uma vez por ano, dar uma voltinha em torno da nossa lembrança.

                                               “”””””””””””””””””””””

Pousamos a substância sobre a pedra fria do balcão e trocamo-la por palavras. Porém, as palavras são símbolos para a prática do dizer (e, tantas vezes do enganar). E, ainda mesmo que contorcidas, esticadas ou manipuladas recorrendo-se às mais engenhosas formas. Nunca saberão ser mais que palavras.

                                               “”””””””””””””””””””””

E porque naquele dia vieste para falar da liberdade, escutei-te um dia inteiro sem dizer nada. Mas, já eram tantas as palavras acumuladas entre nós, que sem repararmos, as demasiadas palavras separaram-nos.

                                               “””””””””””””””””””””

Não sei se saberemos algum dia escrever uma história que tenha portas por todo o lado, para que as personagens possam esquivar-se, sempre que o narrador as encaminhe para as proximidades do labirinto.

 27 de Abril de 2020
João Santiago


sábado, 25 de abril de 2020

O QUOTIDIANO INDUZIDO

Hoje não desci a avenida não perguntes porquê
não, não era o pólen como da outra vez…
hoje fiquei olhando do outro lado do rio
como se fora o dia de todos-os-santos
que vi tudo de negro ou os meus olhos já não vêm tanto?

Hoje atravessei a ponte meia lisboa sob o meu olhar
e tu não estavas lá para me receber
porque te foste embora mãe?
Desta vez não me tiravam dos teus braços
e a ponte já mudou de nome…

Porquê as lágrimas mãe? Onde está aquela força
disfarçada de sorriso enquanto me afagavas
e as sombras deambulavam pela casa?

Não são perguntas mãe ou lendas de rainha
(nem cravos nem rosas)
a força que guardo das tuas mãos nas minhas


25 de Abril de 2020
Arlindo Mota

DIAS DE DESCOBERTA


DIAS de DESCOBERTA
Hoje é um dia rico de recordações. Aquele dia em que, inevitavelmente, se coloca a mesma pergunta : "onde estavas no 25 de Abril de 1974 ?" .
O único dia que integra a memória colectiva, que obriga milhares de pessoas a  recuar "ao dia inicial", em que o gesto ficou suspenso na incerteza das notícias, o dia de todas as esperanças, um dia gravado no passado, cada vez mais distante, mas nem por isso menos presente .
Se a idade nos ensina a gerir o tempo, o silêncio e a memória, ou que dela vai permanecendo, ensina-nos também a redimensionar o presente para encontrar no futuro, pelo menos, uma razão que o justifique.
Ensina-nos a  eliminar tudo o que é inútil, e a deixar espaço para que a vida ainda nos surpreenda, com a alegria de uma realidade agora só imaginada.

25 de Abril de 2020
MALICE SILVA


ABRIL



Abril, festeja glorioso momento
em que perfumou a viagem;
libertou o pensamento,
mudou no tempo a folhagem!

25 de Abril 2020
Inácio Lagarto


APRENDENDO A SOSSEGAR OS DIAS



Início da sexta semana de recolhimento. A manhã está chuvosa, há um cansaço que não é bem físico, talvez o peso já, de uma tristeza que se aproxima. Salvou-me deste momento de tensão a chegada, desse, que a miúdo me aparece para nos atermos a momentos de agradável conversa. Esse, de quem pouco sei, e muito menos de onde vem; sinto-o quando chega, conversamos serenamente, e abala quando lhe dá.
 E, desta vez, foi ele que iniciou a conversa apresentando-se com uma pergunta: - Irmão, tu acreditas que passada a tempestade, a cidade, como assim prometeu, vai começar a montagem dos andaimes para a edificação de uma maneira de ser mais contemplativa, tendo em mente desviar-se dos caminhos que a trouxeram ao desastre?
- Acreditas mesmo nisso, irmão?
- Não, não acredito, respondi. Sei que as promessas são como a loiça que deixamos cair e parte-se: imediatamente a seguir ao constrangimento, varremos os cacos para o lixo e logo, depois, o esquecimento fecha o caso. 
- A cidade, acrescentou ele, é hoje um delírio perigoso virado contra si mesma. Incapaz, desde à muito, de cumprir os propósitos que a fundou, começou a encher-se de construções inúteis. Incapaz já, de reparar, que do esterco dessas inutilidades se vinha levantando uma selva outra, visível e invisível, de capacidade renovável e, se calhar imbatível. Surpreendente, é que as organizações que estudam a saúde dos comportamentos estejam tão pouco presentes a denunciar tamanho absurdo.
Conversamos ainda sobre poesia, e escrevemos um poema de fuga para se viver numa cidade cercada por si própria.

Nem da cidade sabendo nem do caminho,
e menos ainda de palavras que como parede o detivessem.
Naquela tarde desamparada, deu-se a bebidas.
E quando de esse ir por aí tanto, um resto de si
corre a lembra-lo, que do que havendo em si já tudo ardia,
levantou-se de embaraçados gestos,
a entregar aos bolsos( inquietas asas)
o que por beber, de resto, havia.

Ao sair da taberna
julgou estar a ser esfaqueado
e caiu redondo num chão
que, a seu ver, já ele mesmo se arredondava.

Já tarde é um corpo no chão.
Umas mãos que tateiam num corpo.
Se calhar em busca de um nome.
Se calhar em busca de si.
Há uma cabeça que se ergue a custo.
Um corpo que estremece de súbito,
que estremece de espanto,
Há um olhar de olhos imensos. Um olhar de uma vez que é única.
Há a descoberta ao virar-se para desconhecido lado,
Que as paredes do mundo
 Sabiam dançar.

23 de Abril 2020
João Santiago

REGISTOS DE UMA QUARENTENA, OU MAIS.



Episódio 13

De vez em quando pego no smartphone, percorro a lista dos contactos e ligo àqueles de quem há mais tempo não tenho notícias.
Hoje calhou a vez de estar à conversa, com um amigo de longa data, um homem simples e bom que vive no campo. O local não é um descampado, mas as casas dos vizinhos distam pelo menos uns bons cem metros umas das outras e a separá-las vinhas e mais vinhas.
Está claro que a conversa começou (e acabou) com o tema do dia e, embora a “coisa” vá sendo suportável sempre fui dizendo que saídas de casa só para ir à farmácia e pouco mais.
A resposta deixou-me a pensar:
- Pois aí está uma grande diferença entre o campo e a cidade. Vocês, aí na cidade saem de casa para ir à farmácia, eu saio de casa para ir à horta, tratar dela, colher o que preciso para a panela e de regresso passo pela capoeira e trago os ovos que as galinhas puseram. Tudo como a natureza o dá.
- Realmente, nesse aspecto tens razão, respondi. Mas os seres humanos são gregários, vivem em grupo, concentram-se nas cidades.
- Sim, vivem em prédios de muitos andares, em cima uns dos outros e apesar disso já ouvi dizer que há casos em que no mesmo prédio vivem pessoas que não se conhecem e nem se cumprimentam quando se cruzam na escada ou utilizam o mesmo elevador. Quando vou ver a vinha ou as árvores e vejo um dos meus vizinhos, lá no terreno dele, levanto o braço em sinal de cumprimento e ele responde-me da mesma maneira. Depois há outro aspecto que te quero lembrar: é a perda de contacto com a Natureza que os citadinos têm. Não sabem o que é sentir a terra lavrada destorroar-se debaixo dos pés, sentir o cheiro que sobe da terra aquando das primeiras chuvas, sentir a força pujante da Natureza em toda esta verdura viva que me rodeia.
- Parece-me que hoje estás com a veia poética desatada, atalhei eu.
- Talvez sim, já li em qualquer lado que a poesia faz parte da vida.
- Certamente que sim. Mas diz-me lá, o que é que pensas desta pandemia do corona?
- O que eu penso é que é a Natureza a cobrar a factura das agressões a que os seres vivos humanizados (alguns muito pouco) a tem sujeitado. Isto tinha que acontecer, com vírus, criados nos laboratórios dos humanos ou no grande laboratório da Natureza ou com outra catástrofe qualquer, era inevitável e espero que o pior não esteja para acontecer, pois como também já li não sei onde, “a Natureza destruirá o homem antes que o homem destrua a Natureza”.
- Palavras muito acertadas meu amigo, estou contigo na defesa desta Grande Casa Humana.
  
22 de Abril de 2020
Sanchez Antunes





terça-feira, 21 de abril de 2020

UM DIA DE PRIMAVERA DO ANO 2020



SAUDADE

Nunca esta palavra (que é nossa)teve tanto significado, como agora.
SAUDADE de ir ao café  pela manhã e, como fazia todos os dias, tomar o pequeno almoço, ler o jornal, dizer um olá aos clientes habituais, que aquela hora são sempre os mesmos,e por vezes comentar as noticias mais interessantes
SAUDADE  de estar com os amigos e, almoçar, jantar ou somente conversar
SAUDADE de ir ao cinema, teatro, concerto, exposições   etc.
SAUDADE das aulas da Uniseti, conversar com alguns colegas (que se tornaram amigos) das nossas risadas e dos nossos professores
SAUDADE  de viajar pelo País, pelo estrangeiro...decidir sem restrições
SAUDADE  de passear pela cidade, estar à beira mar, parar em montras, vaguear sem norte sem barreiras
SAUDADE  DO FUTURO,QUE PARA A MINHA GERAÇÃO, JAMAIS SERÁ
IGUAL AO PASSADO

21 de Abril de 2020
José Manuel Fernandes

domingo, 19 de abril de 2020

DIAS DE DESCOBERTA



"As minhas histórias, escreve-as um homem que sonha com um mundo melhor, mais justo, mais limpo e generoso. As minhas histórias , escreve-as um chileno que sonha que este país cumpra o mais belo dos sonhos : sentarmo-nos todos à mesma mesa com confiança e sem a vergonha de saber que os assassinos daqueles que nos faltam, não recebem o justo castigo". LUÍS SEPÚLVEDA - O poder dos sonhos. 

No dia 16 morreu Luís Sepúlveda.
Autor multifacetado, narrador de muitas viagens, cidadão com elevado espírito cívico, aventureiro pelos confins do mundo, contava, nas histórias dos lugares que visistava, as histórias das vidas dos mais frágeis, dos esquecidos dos sonhos, das vítimas e dos marginalizados.

Com ele descobri  o valor da solidariedade, e que não há limites para o sonho. 
Com ele descobri um "Velho que lia romances de amor" no interior da Amazónia, e sabia tudo sobre o valor da natureza, e da dignidade na morte. 
Com ele descobri que um gato, grande e gordo,  pode ensinar uma gaivota a voar. 
Com ele descobri que entre um gato, de perfil grego, e um rato castanho,  pode haver amizade e partilha . 
Com ele descobri a efémera beleza das "Rosas de Atacama".
As suas histórias perdurarão para lá da brevidade da vida, porque falam dos heróis, reais ou imaginados, que lutam pela justiça, pela dignidade de todos os seres vivos, pela solidariedade, com esperança num Mundo melhor.

Hoje é domingo, um dia bonito, até parece que tudo está bem...

19 Abril 2020
MAlice Silva

REGISTOS DE UMA QUARENTENA OU MAIS...



Episódio 12
Nunca me passou pela cabeça ouvir falar tanto dos seniores ou dos idosos, como também lhes chamam, nem que lhes fossem dispensadas tantas páginas de jornais, revistas, telejornais e coisas que tais. Infelizmente as razões de tal protagonismo não são agradáveis, todos sabemos, por isso, toda a atenção que for prestada àqueles que se incluem no assim chamado grupo de risco é bem-vinda, nomeadamente as recomendações que são difundidas a toda a hora. Mas começo a sentir que já é demais. Os que têm mais idade sabem que não são novos e que, se a cabeça ainda funcionar mais ou menos, tem consciência do risco que os rodeia e da maneira de minimizar esse risco. Mas não é preciso que a toda a hora estejam a relembrar-lhes que são idosos e têm riscos acrescidos. É deprimente.
Depois lá vem a estatística para aliviar a sociedade: não se preocupem, dos que morreram com o vírus a grande maioria eram idosos.
Voltando à questão da ocupação do tempo dos que estão retidos em casa, chegam-lhes soluções para todos os gostos e situações. Há soluções disparatadas, hilariantes, intelectuais, didactico-culturais, um mundo.
Há um par de dias recebi um e-mail de uma organização da área dos serviços sociais que, para ocupar o tempo, propunha aos destinatários, entre outras actividades, uma visita virtual a nada menos que 500 museus, todos eles do melhor que há. Feitas as contas, mesmo com visitas de duração mínima admissível, o tempo necessário para os visitar levam-me a concluir que a crise está para durar... Bolas!   
    
17 de Abril de 2020.
Sanchez Antunes

sexta-feira, 17 de abril de 2020

NADIR AFONSO

                                          "O pintor das leis que regem as formas simples"

NÓS ÉRAMOS ASSIM



Nós éramos assim ...
Lembram-se?...
.....e fazíamos danças de roda, do lenço e cabra-cega e......inventávamos almoços  com pó talco, farinha e... acabávamos num lanche na casa do que morava mais perto...
anos-50--60--70--80...
 17 Abril 2020
António Farinha

TEMPOS DE HOJE E DE AMANHÃ




Trigésimo dia


Neste período conturbado em que vivemos, parecemos perdidos no tempo. Aos dias sucedem-se os dias sem que nada de novo aconteça a não ser a incerteza.
A  incerteza do pico que já não é pico  é agora planalto, mas pode voltar a ser pico.
A incerteza da capacidade de resposta do SNS no caso de um aumento e agravamento  do número de casos .
A incerteza da existência  em número suficiente de equipamentos de protecção e  stock  de testes.
A incerteza da capacidade de recuperação da nossa  economia
A incerteza da continuada capacidade  de isolamento social  que nos é pedida  sem que daí advenham estragos  na  nossa  saúde mental ,física e psic0lógica 
A incerteza que já é certeza, do  agravamento das desigualdades socias
A incerteza da capacidade  de existências de respostas socias mais alargadas.
A incerteza sobre os mecanismos de controlo que podem levar à geolocalização.
A nossa vida oscila hoje entre  aborrecimento e  ansiedade, nalguns casos até entre dor e sofrimento, e a angústia e incerteza do tempo presente e  do amanhã.
A geração grisalha vê-se hoje confrontada com um novo e expectável renovamento do confinamento e isolamento social. Privados de poderem  contactar,  conviver e abraçar aqueles   que  mais amam e gostam . Forçados a uma clausura indefinida ainda no tempo e privados  de um dos mais elementares dos nossos direitos, o gozo da liberdade plena enquanto seres individuais e colectivos.
Ao trigésimo dia esta minha personalidade inquieta-se. Vive-se hoje uma realidade que parece ser  mas na verdade não é. A minha existência parece tornar-se impossível a não ser que exista em mim uma réstia de esperança no amanhã.
Esperança desde logo nos heróis de  hoje em todas as suas dimensões. Esperança  na partilha de saberes,  na investigação e na cooperação. Esperança no timoneiro ao leme da caravela portuguesa. Oxalá saiba orientar  o quadrante do  astrolábio  ao rumo certo que nos leve a bom porto e a ultrapassar estes adversos tempos.
País de heróis marinheiros que fomos, que desbravamos mares nunca dantes navegados, havemos de desbravar este tenebroso e invisível inimigo.
O tempo de hoje  é de incerteza o de amanhã será de esperança.  Seremos  então todos heróis. Havemos de voltar a ser nós.

16 de Abril 2020
Fernanda Resende

AS CAUTELAS DE UM GATO


Cauteloso, o gato, agarrou-se ao tronco da árvore e foi subindo até aos galhos mais altos, onde se instalou. Ao quinto dia de recolhimento, deparou com o Funcionário chefe que passava por baixo e, chamou-o. Senhor Funcionário chefe, ó senhor Funcionário chefe, é cá em cima, sou eu, o gato. O Funcionário chefe, olhando para cima e, vendo o gato, sem esperar atalhou logo: O que é que foi fazer aí para cima? Se é para chamar os bombeiros para o virem tirar de lá, esqueça, eles andam bastante ocupados a transportar doentes, agora não têm tempo para gatos. Ainda assim posso ajudá-lo, indicando que o caminho que tomou para cima é o mesmo a tomar para baixo, só que desta vez é a descer. E se achar que descer é mais complicado, indico-lhe para tentar descer em espiral, assim como que em rosca. Compreende? Não, Senhor Funcionário chefe, respondeu o gato. Eu estou bem onde estou, não quero sair daqui, é que tendo avistado a passagem do Senhor aí por baixo, e tendo colhido, pelas explicações que acabou de me dar agora, que o Senhor é generoso e sabedor. Aproveitava para fazer-lhe uma pergunta: - Por que é que em Madrid e em Paris estão a padecer mais pessoas com a epidemia do que no nosso Alentejo ou no deserto do Saara? – Ora, gato, eu a perder consigo o meu precioso tempo, a ser gentil, e você vem agora com um disparate desses. Então, não lhe é óbvia a diferente densidade de habitantes? – Eu vejo bem, Senhor Funcionário chefe, não é disparate, não. Era aqui mesmo que esperava que chegássemos. Cá de cima vejo tudo e oiço tudo e, especialmente o que oiço, está a trazer-me preocupado. – E, preocupado, pela expressa intenção dos Senhores Funcionários chefes em porem a funcionar, de pressa e sem alterações, um estilo de economia cimentado, precisamente, na aglomeração intensiva de pessoas. E se, assim for, revelasse aos meus olhos que não foi percebida a lição, e que, pela precisa porta que se abriu ao erro, poça vir a entrar um grande tiro no peito. E, nesse caso digo-lhe já, que não vou sair daqui. Entro num processo de adaptação, aprendo a comer as folhas da árvore, e… cá me arranjarei.
Nisto, vinham a passar por ali dois funcionários de menor posto, e ordena-lhes o Funcionário chefe: amanhã, veem aqui, e derrubam esta árvore por incumprimento sucessivo das regras do recolher obrigatório.

15 de Abril de 2020
João Santiago 


CARTA DE AMOR NUMA PANDEMIA VÍRICA


POEMA ESCRITO POR MARIA DE SOUSA quatro dias antes (em 3.03.2020) de saber que estava infetada pelo vírus COVID 19, que a matou no dia 13.04.2020. O poema foi inicialmente escrito em inglês, conforme foto. É impressionante… Fátima Ribeiro Medeiros

CARTA DE AMOR NUMA PANDEMIA VÍRICA

Gaitas-de-fole tocadas na Escócia
Tenores cantam das varandas em Itália
Os mortos não os ouvirão
E os vivos querem chorar os seus mortos em silêncio
Quem pretendem animar?
As crianças?
Mas as crianças também estão a morrer.

Na minha circunstância
Posso morrer
Perguntando-me se vos irei ver de novo
Mas antes de morrer
Quero que saibam
O quanto gosto de vocês
O quanto me preocupo convosco
O quanto recordo os momentos
partilhados e
queridos
Momentos então
Eternidades agora
Poesia
Riso
O sol-pôr
no mar
A pena que a gaivota levou à nossa mesa
Pequeno almoço
Botões de punho de oiro
A magnólia
O hospital
Meias pijamas e outras coisas acauteladas
Tudo momentos então
Eternidades agora
Porque posso morrer e vós tereis de viver
Na vossa vida a esperança da minha duração

Maria de Sousa

(Tradução de João Luís Barreto Guimarães)

quarta-feira, 15 de abril de 2020


DOIS POEMAS DE MARIA DE SOUSA


TUDO O QUE EM MIM É TEOREMA
Há em mim um vagabundo habitante de azuis
que inventa poemas.

Mas tudo o que em mim é teorema
pertence a este país de prados e verdes permanentes,
roxos ocasionais e arco-íris de cinzento,

e, por muito que isso entristeça minha Mãe,
muito mais em mim é teorema que poema.


VAI-SE DE DEVER EMBORA
Vai-se de dever embora,
fica-lhe de promessa a hora

assim dividida parte

Senhor do Bomfim,
cuide-me de mim,

Senhor da Boa Nova,
cuide-me da nova hora,
assim pra trás, de dever deixada.

Maria de Sousa, in “A Hora e a Circunstância”

CARTA EPITÁFIO PARA UMA VÍTIMA DA COVID 19


Logo de manhã cai sobre mim a notícia: Maria de Sousa, a cientista portuguesa aplaudida, premiada e respeitada em todo o mundo, a quem a Imunologia tanto deve, morreu na noite passada, num Hospital lisboeta, vitimada pela COVID 19. Ela, que preferia aos “dias de sul” as “cidades de norte e névoa” morre na luminosa Lisboa. Talvez por ela o dia se tenha posto hoje tão triste!
Não poderei esquecer a sua voz jovial e comunicativa, o seu sorriso positivo, o seu olhar incisivo e perguntador. O seu saber ouvir. O seu ar de grande simplicidade, como tem quem é verdadeiramente grande...
Então estremeci. Lá partiu outra grande personalidade, lá ficamos todos mais pobres. Uma grande tristeza tomou conta de mim. Fiquei mal, estou mal…
Não podia deixar de vir aqui. Por ela. Por mim. Por nós.
Conheci-a num dos encontros da Gulbenkian sobre literatura para a infância. Ouvi-la foi uma descoberta. Um espanto. Uma dádiva. Um privilégio.
Estava com a Matilde Rosa Araújo que Maria veio cumprimentar no final da sua conferência e assim fomos apresentadas uma à outra. Trocámos algumas palavras ali mesmo e enquanto  saíamos.
Elas foram almoçar com os administradores e eu à cantina da NOVA, como sempre faço. À tarde regressaram juntas e vieram ao meu encontro. No final do dia fomos lanchar e então falámos um pouco de tudo o que nos interessava. Longamente…
Voltámos a estar juntas mais duas vezes, ambas mediadas pela Matilde.
Além dos livros científicos, como Meu dito Meu Escrito, que a Gradiva editou em 2014, Maria publicou, em 1988, um livro de poesia, A Hora e a Circunstância, rapidamente esgotado. Em vez de prefácio o livro está pontilhado por diversas “cadenzas” assinadas por Agostinho da Silva. E por ilustrações de Miguel Horta. Uma preciosidade.
Partilho convosco dois poemas curtos do livro, que revelam a poeta que habitava os espaços vividos pela cientista.

Ao longo de todo o dia, a natureza tem chorado Maria, despejando sobre nós muitas das nuvens que nos passam por cima. E o grito do trovão que escutei há pouco parece querer igualar a tristeza de alguns de nós.

14 de Abril 2020
Fátima Ribeiro Medeiros

NOVOS TEMPOS



Esta situação em que vivemos, que apareceu de repente sem avisar, sem sabermos de onde e porquê,  penso com muita frequência no que deve ser e no que não deve ser, no que foi o passado e no que será o futuro. Na minha cabeça há uma baralhação continua neste tempo que nos consome e que nos impede de pensar no futuro.
No entanto, o único tempo verdadeiramente real é: o presente.
Esse presente que, certamente, nos vai obrigar a uma meditação mais profunda e que deve ser: aprender de novo a ver, aprender de novo a ouvir, aprender de novo a um outro comportamento.
Só quando todos tivermos enveredado por este caminho de reeducação, tornando a vida mais enriquecida e mais útil, chegaremos à conclusão que as tragédias também podem servir para melhorar a nossa vida.

14 de Abril 2020
 Maria do Carmo Branco

AS VANTAGENS DAS TECNOLOGIAS



Não podendo estar com pessoas amigas, incluindo as alunas, tenho vindo a falar   com elas pelo telemóvel para saber como vão passando nestes dias. O mesmo vejo que fazem as minhas netas com as suas amigas. Desde que começou a quarentena que também os meus outros filhos e netos estão detidos em casa, por isso não têm podido visitar-me. Os mais novos, mais adaptados às tecnologias, passam os dias a conversar e até fazem ginástica comunicando-se pelo telemóvel, no domingo, a mais nova, abriu quatro janelas no seu  telemóvel, pondo, eu e os meus quatro filhos e os seus, a vermo-nos e a conviver-mos como se  não houvesse distâncias a separar-nos. A tecnologia juntou-nos. E eu senti-me muito feliz  

Fátima Santiago


terça-feira, 14 de abril de 2020

O QUOTIDIANO INDUZIDO Estranho, muito estranho...



Era Julho ou Agosto não sei bem. Sei que as minhas mãos exalavam um perfume agreste enquanto moldavam na areia molhada uma coroa de espuma envolta em sargaços que me invadiam o corpo deixando nele um rasto áspero, escorregadio, mas revigorante. Eram afinal as ansiadas férias de Verão: como as leituras estavam há muito selecionadas, Outono podia esperar. De súbito vejo-me rodeado de uma miríade de minúsculos crustáceos que me mordiam assanhadamente os pés e as pernas e a comichão começava a ser intensa. Instintivamente ia para me coçar quando irrompe, ofegante, o vigilante da praia com o aviso de que esse gesto aumentaria o risco de se espalhar pelo corpo todo.
A partir daí só me recordo de ouvir para lavar bem as mãos com água e sabão e desinfetar com gel repetidas vezes. E pôr luvas e máscara. Sabão e água, álcool. A roupa a crestar. A roupa a lavar a 60º. Lavar bem as mãos com, lavar bem as mãos, lavar… depois, depois não me recordo de mais nada.  
14 de Abril 2020
arlindo mota

segunda-feira, 13 de abril de 2020

QUEM É O AUTOR DESTA CÉLEBRE OBRA?

                                                                                                          Foto AM

REGISTOS DE UMA QUARENTENA, OU MAIS.




Episódio 11
Ontem foi Domingo de Páscoa. Já passou, mas, na nossa memória, ficará como um dia sofrido.
Os dias santos, a par de outros não santos mas também importantes, tem em comum, entre nós e na maioria dos casos, celebrarem-se à mesa, certamente com excepções que desconheço.
No Domingo de Páscoa, em tempos que já lá vão, o costume familiar variava entre fazer um piquenique no campo ou sentados à mesa, à volta do borreguinho no forno. De uma maneira ou de outra havia pessoas a festejar comendo. E esse acto tão simples de comer, na sua essência faz a distinção entre o homem e o animal: o homem come, o animal alimenta-se.
Mas esta Páscoa, por aquilo que todos sabem, não tive à mesa a presença da família mais próxima. Que mal teremos feito para que tal nos acontecesse?
A divindade estará zangada? Então, como nos tempos bíblicos, sacrifiquei um anho, e ofereci esse sacrifício a Lares e Penates, para os apaziguar, caso os tenha ofendido.
Depois a vítima foi purificada pelo fogo (assada, primeiro em forno baixo, e a seguir mais esperto para acabamento) e já sobre a ara familiar foi-lhe prestada a homenagem que merecia, pelos dois únicos celebrantes em retiro forçado.

 
13 de Abril de 2020.
Sanchez Antunes