sábado, 25 de abril de 2020

APRENDENDO A SOSSEGAR OS DIAS



Início da sexta semana de recolhimento. A manhã está chuvosa, há um cansaço que não é bem físico, talvez o peso já, de uma tristeza que se aproxima. Salvou-me deste momento de tensão a chegada, desse, que a miúdo me aparece para nos atermos a momentos de agradável conversa. Esse, de quem pouco sei, e muito menos de onde vem; sinto-o quando chega, conversamos serenamente, e abala quando lhe dá.
 E, desta vez, foi ele que iniciou a conversa apresentando-se com uma pergunta: - Irmão, tu acreditas que passada a tempestade, a cidade, como assim prometeu, vai começar a montagem dos andaimes para a edificação de uma maneira de ser mais contemplativa, tendo em mente desviar-se dos caminhos que a trouxeram ao desastre?
- Acreditas mesmo nisso, irmão?
- Não, não acredito, respondi. Sei que as promessas são como a loiça que deixamos cair e parte-se: imediatamente a seguir ao constrangimento, varremos os cacos para o lixo e logo, depois, o esquecimento fecha o caso. 
- A cidade, acrescentou ele, é hoje um delírio perigoso virado contra si mesma. Incapaz, desde à muito, de cumprir os propósitos que a fundou, começou a encher-se de construções inúteis. Incapaz já, de reparar, que do esterco dessas inutilidades se vinha levantando uma selva outra, visível e invisível, de capacidade renovável e, se calhar imbatível. Surpreendente, é que as organizações que estudam a saúde dos comportamentos estejam tão pouco presentes a denunciar tamanho absurdo.
Conversamos ainda sobre poesia, e escrevemos um poema de fuga para se viver numa cidade cercada por si própria.

Nem da cidade sabendo nem do caminho,
e menos ainda de palavras que como parede o detivessem.
Naquela tarde desamparada, deu-se a bebidas.
E quando de esse ir por aí tanto, um resto de si
corre a lembra-lo, que do que havendo em si já tudo ardia,
levantou-se de embaraçados gestos,
a entregar aos bolsos( inquietas asas)
o que por beber, de resto, havia.

Ao sair da taberna
julgou estar a ser esfaqueado
e caiu redondo num chão
que, a seu ver, já ele mesmo se arredondava.

Já tarde é um corpo no chão.
Umas mãos que tateiam num corpo.
Se calhar em busca de um nome.
Se calhar em busca de si.
Há uma cabeça que se ergue a custo.
Um corpo que estremece de súbito,
que estremece de espanto,
Há um olhar de olhos imensos. Um olhar de uma vez que é única.
Há a descoberta ao virar-se para desconhecido lado,
Que as paredes do mundo
 Sabiam dançar.

23 de Abril 2020
João Santiago

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