domingo, 5 de abril de 2020

REALIDADE, MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO: O RETRATO


Ter-se-á cortado por metade aquele que, olhando para trás, não se descobre em parte nenhuma. Por mim, gosto de acreditar que o rasto é um cão fiel que nos vem seguindo, na entrega constante de nos lembrar que, só estamos completos, quando se inclui na equação a raiz e o caminho. Gosto, portanto, de acreditar nisto. Se não for real é poético, o que para o caso melhor serve. Assim, aquilo que sou é o meu corpo a ser. Quando penso é o meu corpo a pensar, quando respiro ou como, é o meu corpo a faze-lo inteirinho desde as unhas aos cabelos. É isso: tudo o que sou é um sistema, uma fabulosa aventura comunitária. Nada de mim é por empréstimo trazido nas asas mágicas de um qualquer transcendental. Se nos meus escritos, possa por vezes aparecer a palavra alma, aparece sempre como prestação metafórica, simbólica ou elíptica; recurso que me poupa no discurso. Acontece, porém, haver vezes, em que a razão parece desviar-se dando passagem a um eu do fundo, que por emergir em situações excecionais, e jamais sentidas, possa abri-nos a espaços de aparência vacilante. Mas eu conto: há uns meses trouxeram-me uma fotografia, perguntando-me se eu era capaz de a identificar. Confesso que, ao olha-la, fiquei sem chão, e que veloz como relâmpago me vi lançado para o meu principio: era um grande plano da casa onde fui criado, não nasci lá, fui nascer ao hospital, mas de certeza que lá terá sido feita a encomenda. Por pormenores abundantes na fotografia, posso afirmar sem receio de erro, que quando ela foi tirada, eu ainda não devia ter nascido, mas não devia faltar muito, e é até muito possível que já andasse a boiar no ventre materno.
Ontem, andando a fazer umas arrumações voltei a pegar na fotografia. Era, como já disse, um grande plano, lá estava a casa agachada num rebaixamento do terreno, e no quintal, estendidas a secar estavam várias peças de roupa. Pelos costumes, afirmo que aquelam roupas terão sido ali penduradas pela minha mãe. E ali fiquei eu a olhar para a fotografia, completamente deslocado da ideia de tempo, esperando vela surgir para as apanhar. Será que nesse entretanto estive perdido? Eu acho que estive bem achado. E se não foi real foi poético o que, nesse caso, lhe acrescenta melhoras.

3 Março 2020
João Santiago     

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