Ter-se-á cortado por metade aquele que, olhando para trás,
não se descobre em parte nenhuma. Por mim, gosto de acreditar que o rasto é um
cão fiel que nos vem seguindo, na entrega constante de nos lembrar que, só
estamos completos, quando se inclui na equação a raiz e o caminho. Gosto,
portanto, de acreditar nisto. Se não for real é poético, o que para o caso
melhor serve. Assim, aquilo que sou é o meu corpo a ser. Quando penso é o meu
corpo a pensar, quando respiro ou como, é o meu corpo a faze-lo inteirinho
desde as unhas aos cabelos. É isso: tudo o que sou é um sistema, uma fabulosa
aventura comunitária. Nada de mim é por empréstimo trazido nas asas mágicas de
um qualquer transcendental. Se nos meus escritos, possa por vezes aparecer a
palavra alma, aparece sempre como prestação metafórica, simbólica ou elíptica;
recurso que me poupa no discurso. Acontece, porém, haver vezes, em que a razão
parece desviar-se dando passagem a um eu do fundo, que por emergir em situações
excecionais, e jamais sentidas, possa abri-nos a espaços de aparência
vacilante. Mas eu conto: há uns meses trouxeram-me uma fotografia,
perguntando-me se eu era capaz de a identificar. Confesso que, ao olha-la,
fiquei sem chão, e que veloz como relâmpago me vi lançado para o meu principio:
era um grande plano da casa onde fui criado, não nasci lá, fui nascer ao
hospital, mas de certeza que lá terá sido feita a encomenda. Por pormenores
abundantes na fotografia, posso afirmar sem receio de erro, que quando ela foi
tirada, eu ainda não devia ter nascido, mas não devia faltar muito, e é até
muito possível que já andasse a boiar no ventre materno.
Ontem, andando a fazer umas arrumações voltei a pegar na
fotografia. Era, como já disse, um grande plano, lá estava a casa agachada num
rebaixamento do terreno, e no quintal, estendidas a secar estavam várias peças
de roupa. Pelos costumes, afirmo que aquelam roupas terão sido ali penduradas
pela minha mãe. E ali fiquei eu a olhar para a fotografia, completamente
deslocado da ideia de tempo, esperando vela surgir para as apanhar. Será que
nesse entretanto estive perdido? Eu acho que estive bem achado. E se não foi
real foi poético o que, nesse caso, lhe acrescenta melhoras.
3 Março 2020
João Santiago
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